Pedalando pelo clima
de Vitória Longuinho Holz
Nasci e cresci em uma cidade, no sul do Brasil, onde o desmatamento roubou a cena, reduzindo a cobertura florestal para áreas tão pequenas, que eu nem ao menos conhecia a fauna e a flora que caracterizam a região onde morei a maior parte da minha vida. Aos 18 anos eu me mudei para o Rio de Janeiro para cursar o ensino superior em Biologia e foi um choque de realidade muito grande, que impactou minha vida em vários sentidos. Uma cidade com uma beleza natural exuberante, mas ao mesmo tempo com a presença marcante da desigualdade social.
A partir do momento em que comecei a residir no Rio de Janeiro, comecei a presenciar de perto os desastres socioambientais recorrentes daqui, como inundações, deslizamentos de terra e ressacas do mar, afetando a população no geral, mas principalmente os mais pobres. A desigualdade social é explícita, se mostrando presente na forma como ocorreu a ocupação do território, onde existem pessoas morando em áreas de alto risco, por necessidade e por não terem condições e oportunidades para arcar com uma qualidade de vida melhor. Isso me fez abrir os olhos para uma realidade que antes era distante de mim, para o quanto a população precisa de medidas efetivas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e para o quanto o Estado precisa perceber, aprender e investir no combate desses problemas sociais.
Todos esses problemas socioambientais que presenciei tanto na minha cidade natal, quanto no Rio de Janeiro fizeram com que eu saísse da inércia e começasse a agir para prevenir uma crise climática ainda maior. Foi aí que eu passei a fazer parte de um coletivo de comunicação chamado “Cicli – pedalando pelo clima”, que conta histórias de pessoas suscetíveis a enfrentar os efeitos adversos das mudanças climáticas.
Muitas vezes, no Brasil, o discurso das mudanças climáticas que ouvimos e nos é ensinado nas escolas (quando isso é feito) é baseado em uma visão dos países do Norte. Somos introduzidos ao assunto a partir do derretimento de geleiras, o impacto na fauna de lá, como os ursos polares e como os países do Norte podem sofrer com isso. Esses discursos não deixam de ser verídicos, tristes e muito preocupantes, porém faz com que a maioria das pessoas pensem que as mudanças climáticas são algo distante, que não ocorre no Brasil.
Muito pelo contrário, as mudanças climáticas estão acontecendo aqui e agora, com inúmeros impactos sob a população. Assim, o Cicli nasce a partir da necessidade de conscientizar e introduzir a população aos diferentes impactos das mudanças climáticas que vem afetando a população local, a partir de histórias vivenciadas no nosso próprio país. Para contar essas histórias, o Cicli faz viagens de bicicleta carbono-neutras pelo Brasil, registrando e produzindo conteúdo para redes sociais. Até hoje foram mais de 1000 km pedalados e 122 histórias documentadas sobre a crise climática.
Eu nunca pedalei longas distâncias de bicicleta, mesmo usando a bicicleta no meu dia-a-dia, mas mesmo assim, eu resolvi ingressar no Cicli no início de 2020, quando o time do Cicli resolveu ser uma rede descentralizada e acolher novos jovens, como eu e o Felipe Sá, que moramos no Rio de Janeiro. O Felipe é natural de Teresópolis, uma cidade da Região Serrana do Rio de Janeiro, e logo na primeira reunião ele sugeriu a ideia de documentarmos os 10 anos da tragédia da Região Serrana do Rio de Janeiro, que iria ocorrer em janeiro de 2021. Desde então, eu embarquei com o Felipe nessa.
Em janeiro de 2011, chuvas intensas atingiram as cidades da Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, no bioma Mata Atlântica, provocando mais de 900 mortes e deixando milhares de famílias desabrigadas, o que é considerada, hoje, a maior tragédia climática do Brasil. Muitos fatores agravaram o desastre, como a ocupação não planejada do território, onde existem diversas famílias morando em encostas e beiras de rio, além da alta degradação do bioma Mata Atlântica, que atualmente possui apenas 28% da cobertura de floresta original devido à alta degradação para agricultura, pecuária, urbanização e expansão industrial. Dessa forma, eu e o Felipe resolvemos ir atrás do que foi feito de lá pra cá para evitar que novos eventos como esses voltassem a acontecer. Durante o ano nós planejamos toda a cicloviagem com muito cuidado e em dezembro de 2020 nós embarcamos nessa aventura, seguindo todos os protocolos de segurança.
Nós pedalamos mais de 100 km em 4 dias pelo município de Teresópolis, para escutar 3 pessoas que foram diretamente afetadas em contextos diferentes. Nós escutamos histórias comoventes, como a de uma moradora que teve sua casa interditada após a tragédia, perdeu muitas pessoas próximas, mas sem o apoio do governo, continua morando na mesma casa, por não ter condições de arcar com os custos de outra moradia. Escutamos outra moradora que conseguiu a ajuda do governo e atualmente mora em um conjunto habitacional construído para as pessoas que ficaram desabrigadas após o desastre. Porém, essa moradia apresenta diversos problemas que precisam ser resolvidos. E, por último, nós ouvimos uma história que nos mostrou que é possível enfrentar a crise climática e desastres como o ocorrido através de soluções a partir da natureza.
Quem nos contou essa história foi o Beto, que possui um sítio de produção agroflorestal, o Sítio do Bicho Solto. Nesse modo de produção, culturas agrícolas são associadas com árvores florestais e frutíferas na mesma área, buscando utilizar os recursos naturais, como solo, água e energia da maneira mais eficiente. Essa técnica reproduz processos naturais, tornando o solo mais saudável, resiliente e produtivo, diferente do que se observa na agricultura convencional, que força a existência de condições não naturais levando ao empobrecimento do solo e ao aumento de sua vulnerabilidade. No sítio do Bicho Solto, a Mata Atlântica é conservada e as margens do córrego que passa por ele são preservadas, o que infelizmente não se repete nas redondezas, onde a maior parte dos produtores possuem monoculturas de alface.
O Beto nos contou que com as chuvas de 2011, muitas famílias ficaram ilhadas em suas propriedades e, como produziam apenas poucas variedades para o mercado, não plantando para si mesmas, passaram por uma escassez de alimentos ao não conseguirem sair de suas terras, chegando a ser abastecidas por helicóptero. Já no sítio do Beto, eles tinham tudo para comer em casa, tinham fubá, mel, banana, amendoim, porque eles sempre tiveram essa direção de produzir para consumo, de ter a produção para consumo junto com a produção de mercado. Porém, ele reforçou que hoje a situação dos seus vizinhos é basicamente a mesma, pouquíssimo mudou, continua a mesma insegurança alimentar daquele momento da tragédia.
Com o Sítio do Bicho Solto nós percebemos que é possível criar novas formas de plantio na cidade, onde a monocultura domina. É possível ter uma produção de alimentos que conserva a Mata Atlântica e combate a crise climática através da nossa floresta em pé. Nós temos soluções disponíveis, agora é necessário difundi-las e aplica-las.
Participar dessa cicloviagem foi um desafio muito grande para mim, que me tirou da minha zona de conforto. Além do desafio físico, tinha o desafio de executar essa viagem enquanto mulher, onde eu tive que percorrer distâncias que eu nunca havia percorrido em uma cidade diferente, com uma altitude elevada e com uma pessoa que eu conhecia apenas virtualmente. Muitas questões se passaram na minha cabeça, dentre elas o perigo e de ser uma mulher, pedalando na zona rural de uma cidade, passando por estradas movimentadas ou quase desertas.
Infelizmente se ouve muita coisa na estrada quando se é uma mulher em um país extremamente machista, com índices altíssimos de estrupo, violência e feminicídio. Amigos próximos me enviavam mensagens como “Vitória, você tem certeza que quer ir? Você não precisa”, mas eu precisava sim, o planeta precisa que as pessoas comecem a agir e essa foi a minha chance de começar. Teve chuva, lama, cansaço, mas também teve o encontro com pessoas maravilhosas, incluindo o Felipe, que compensaram todo o esforço. Essa experiência foi, de longe, a melhor coisas que aconteceu em 2020.
Cerca de
Vitória Holz é Bióloga e mestranda em Ecologia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Há alguns anos trabalha com temas relacionados às mudanças climáticas e atualmente, pesquisa sobre Soluções baseadas na Natureza no Brasil. Além disso, atua em projetos voluntários, como o Cicli, que conta histórias de pessoas suscetíveis a enfrentar os efeitos adversos das mudanças climáticas.